BIBLIOTECA
POPULAR, CATALOGAÇÃO DE ACERVO E DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA.
Judy Mauria Gueiros Rosas
RESUMO
Apresentamos
nossa trajetória de pessoas leigas ao serem desafiadas a desenvolver o processo
de organização das obras de uma biblioteca deflagrado com o projeto de extensão
Catalogação do Acervo da Biblioteca Popular Riacho do Navio. Discutimos aspectos
teóricos relacionados à questão do analfabetismo e da subescolarização, a
situação da leitura e a importância da biblioteca para o desenvolvimento do
hábito da leitura no Brasil. Descrevemos procedimentos e impasses
experimentados no processo de catalogação e expomos nossas impressões e
conclusões considerando a íntima relação entre pesquisa e extensão popular.
Apresentação
O acaso nos trouxe, nos idos do
ano de 2005, a possibilidade de possuir uma casa numa linda e singela cidade do
sertão alagoano, situada às margens do Rio São Francisco, e que desde os anos
finais da década de 1990 foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) como patrimônio paisagístico nacional. Esta é
Piranhas, cidade que hoje conta, segundo dados censitários oficiais, com pouco
mais de 23 mil habitantes (IBGE, 2013).
Então
encantadas com tudo que se descortinava aos nossos olhos de turistas, vimo-nos
diante de uma ‘transação comercial’ para lá de tentadora acompanhada de certa
perplexidade: como pode um lugar tão lindo e uma casinha construída no fim do
século XIX se entregarem para nós a tão módico preço?
Aquilo
que inicialmente se tornaria um lugar para aquietar o espírito em descansos de
férias, com o passar dos anos foi revelando suas peculiaridades. As mulheres,
os homens, de todas as idades nos encheram de curiosidade e, em pouco tempo,
descortinavam-se, diante de nós, os paradoxos, os conflitos. A beleza cedeu
lugar aos reais protagonistas daquela história de cangaço e cangaceiros, de
coronéis e coronelismo.
Assim,
nos embrenhamos em descobrir e compreender Piranhas a partir dos seus
indicadores sociais de qualidade de vida, de emprego, de educação.
Começamos
a entender concretamente o que as ruas e as pessoas daquele lugar há muito já
nos anunciavam: existia (e existe!) uma quantidade tão significativa de pessoas
analfabetas (crianças, jovens e adultas) que não nos deixava sossegadas.
O desenho
que construímos para a nossa vida de intelectual e de pessoa no mundo, nos
impedia de só olhar, só saber. Dizemos isto porque compartilhamos do
entendimento de que o conhecimento nos compromete e nos impulsiona a agir de
maneira a contribuirmos com a superação das situações problemáticas com as
quais nos deparamos. Ou seja, entendemos que nossa formação
não encerra na mera prática profissional. Ela deve estar entranhada em nossas
práticas e deve ser orientada por nossas concepções que são políticas,
ideológicas e servem de fundamento às nossas escolhas. Escolhemos nos juntar à
maioria subescolarizada, não leitora, não escritora, ao considerarmos que,
muito mais dramático que a equivocada constatação de uma situação de exclusão, existe
uma real inclusão cuja subalternidade se expressa através da pobreza, do
analfabetismo, da ignorância.
Foi
assim, quando percebemos que a casinha passava a maior parte dos anos que se
seguiam fechada e sem utilidade, que decidimos, junto a alunos, alunas, amigas
e amigos de vida, transformar aquele espaço em uma biblioteca popular, hoje
registrada com o nome Biblioteca Popular Riacho do Navio.
A
preocupação com a situação do insucesso escolar e a relevância da leitura para
a superação dos analfabetismos absoluto e funcional constituiu, portanto, o
motivo principal pelo qual fundamos esta biblioteca.
Registrada
a biblioteca, realizamos campanha de doação de livros com a indicação de que
qualquer um teria utilidade. Interessávamo-nos, naquele momento, em juntar
obras que pudessem ser manuseadas, lidas, utilizadas por qualquer pessoa que
tomasse a iniciativa de se aventurar no mundo dos livros e da leitura e que
atendessem aos interesses mais diversos.
Após
ter conduzido cerca de 30 alunas e alunos dos cursos de Pedagogia e de Letras
da UFPB, numa atividade denominada “viagem exploratória”, na qual propúnhamos
que tais sujeitos conhecessem a cidade de Piranhas, com o intuito de juntos
termos ideias sobre a realização de intervenções que contribuíssem com a
melhoria dos indicadores de educação, especialmente das escolas públicas deste
município.
Nesta
viagem levamos cerca de 3.000 livros que arrecadamos numa campanha de doações realizada
entre alunos e amigos. Mais que uma campanha de doação de livros, tal
experiência serviu para observarmos um real ‘movimento’ de pessoas com diversos
perfis ideológicos, religiosos, educacionais, em torno do problema da leitura
no Brasil. Em pouco tempo conseguimos formar significativo acervo para o modelo
de biblioteca popular a que nos propusemos inicialmente, e que conta com livros
das mais distintas áreas de conhecimento.
É
certo afirmar que naquele momento não havíamos nos dado conta da difícil tarefa
de organizar estes livros. Tomados de perplexidade nos perguntávamos: como
arrumar tais obras?
A
necessidade de organizar o acervo da nossa biblioteca constituiu o momento de
deflagração do projeto Catalogação do Acervo da Biblioteca Popular Riacho do
Navio, uma experiência tão marcante que precisa ser relatada.
É,
portanto, nossa intenção no presente artigo apresentar nossa trajetória de
pessoas leigas em relação ao processo de organização de uma biblioteca
deflagrado com o projeto de extensão Catalogação do Acervo da Biblioteca
Popular Riacho do Navio.
Para
que isto seja possível organizamos o texto da maneira que segue: na primeira
parte discutiremos aspectos teóricos relacionados à questão do analfabetismo e
da subescolarização e a situação da leitura e da importância da biblioteca para
o desenvolvimento do hábito da leitura no Brasil; a segunda parte consiste em
descrever os procedimentos e impasses por nós experimentados no processo de
catalogação do acervo da bibiblioteca Popular Riacho do Navio, local onde no
fim expomos nossas impressões e conclusões.
Analfabetismos, leitura, biblioteca
Piranhas,
cidade situada no sertão alagoano, apesar de ter despontado nos últimos anos
como o 2º mais importante destino turístico do estado, em virtude da beleza
natural e da importância histórica relacionada ao ciclo do cangaço, é detentora
do perverso percentual de 37% de analfabetos com 15 anos de idade e mais, como
atesta o Censo Demográfico de 2010 (IBGE).
Assim
indagamos: que tipo de desenvolvimento foi desencadeado neste lugar que não tem
servido para promover acesso a direitos básicos como o ler e escrever para a
maioria das pessoas que lá vivem?
A
fundação da Biblioteca Popular Riacho do Navio se deveu principalmente pela consideração
da importância da frequência a espaços como este para o desenvolvimento do
hábito e uso da leitura e escritura e suas implicações, na perspectiva não só
da criação do hábito da leitura e melhora da utilização do texto escrito, mas
também das consequências imediatas que tais práticas possam ensejar: uma
compreensão do real mais aguda, movimento este que se coloca como pré-condição
para que desencadeemos nossa emancipação.
Ocorre
que a problemática do analfabetismo e da subescolarização não é um fenômeno que
se manifesta apenas neste município. De acordo com dados oficiais, a maior
parte da população no Brasil não consegue sequer completar as séries que
compõem o ensino fundamental, e os dados resultantes do Índice de
Desenvolvimento da Educação no Brasil (IDEB) nos revelam que as crianças e
jovens brasileiros estão longe de usar a leitura como efetiva ferramenta de
comunicação e de compreensão do real.
Adentramos
o século XXI com mais de uma dezena de milhões de jovens e adultos analfabetos
absolutos e com outro tipo de analfabetismo que afeta aqueles que estudaram,
mas não construíram habilidades de leitura e escrita que lhes permitam
utilizá-las cotidianamente como instrumentos de comunicação. E esta situação
afeta a maior parte das pessoas que cursam ou cursaram o ensino fundamental: o
chamado analfabetismo funcional.
Segundo
Tiezzi (2008), o conceito de analfabeto funcional foi criado em 1978, pela
UNESCO, “para referir-se a pessoas que, mesmo sabendo ler e escrever algo
simples, não têm as habilidades necessárias para viabilizar o seu
desenvolvimento pessoal e profissional”. Ou seja, o analfabeto funcional lê,
mas não compreende o que leu, conhece os números, mas mal sabe utilizar as
operações fundamentais da matemática.
Situação exemplar pode ser
encontrada ao focalizarmos o eleitorado brasileiro. Segundo notícia que revela
os resultados de pesquisa realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral, dos 135
milhões de eleitores, mais de 44 milhões não concluíram o ensino fundamental,
20% são analfabetos absolutos ou funcionais, 13% concluíram o ensino médio e
menos de 4% concluiu algum curso superior (UOL, 2011).
Também
Tiezzi nos informa que “o Brasil começa o século XXI com um número maior de
analfabetos funcionais do que tinha de analfabetos absolutos no começo do
século passado” (2008). Isto pode ser indicador de que a ampliação do acesso à
escola para os trabalhadores e trabalhadoras e seus filhos e filhas não
garantiu o fornecimento da “cesta básica” de conhecimentos considerados
necessários.
De
acordo com o Censo Demográfico de 2010 (IBGE), ao considerar as pessoas a
partir de 10 anos de idade sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto
chega-se ao percentual de 50,2%. Mais dramático ainda é o reconhecimento de que
a região do Brasil (Sudeste) com os menores índices a este respeito conta com
absurdos 44,8% da população incluída na citada faixa etária. No outro
“extremo”, a Região Nordeste, apresentam-se os piores indicadores de pessoas
sem instrução ou com ensino fundamental incompleto: 59,1% (p.87).
Ora,
se desde a emergência dos governos da ditadura civil militar foi deflagrado um
processo de ampliação da oferta de vagas nas escolas públicas e, em
decorrência, crescentemente observamos a universalização deste acesso às
pessoas constitucionalmente incluídas como em idade escolar, não tememos
concluir que tais sujeitos frequentaram a escola e não lhes foi garantido o
conjunto de saberes e habilidades pertinentes ao ensino fundamental.
Ao
nos referirmos à universalização do acesso à escola e a partir das informações
divulgadas na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),
realizada em 2012, podemos observar que ainda não concluímos plenamente este
acesso, visto que dos 44,8 milhões de crianças e adolescentes brasileiros de 4
a 17 anos de idade, apenas 41,5 milhões estão estudando, o que revela que mais
de 3 milhões destes sujeitos encontram-se fora da escola. No que diz respeito à faixa etária de 15 a 17
anos, que somam no Brasil 10,4 milhões de pessoas, divulgou-se que quase dois
milhões estão sem estudar (IBGE, PNAD 2012).
Daí
perguntarmos: que tipo de proteção e que mecanismos de obrigatoriedade da
frequência à escola vem sendo desenvolvidos no Brasil que possibilitam tão
significativa quantidade de crianças e jovens não frequentarem a escola? Que
projeto de universalização vem sendo implementado que não absorve a totalidade
dos sujeitos situados na minoridade?
Inegavelmente
o analfabetismo absoluto e o funcional têm sido produzidos no sistema escolar
público brasileiro, o que faz perpetuar o preconceito e a falsa impressão de
que estes correspondem a características individuais de pessoas menos
civilizadas ou mesmo que a inteligência seja um atributo natural e inato.
A
instrução do povo, entretanto, desde as primeiras luzes da sociedade moderna,
nunca foi uma unanimidade entre os burgueses. Alguns questionavam o perigo da
oferta de escola para todos com indagações do tipo: “como podemos ser felizes
se estamos rodeados por um povo que lê?”. Ou, como defendido naquela época, e
ainda se faz tão atual: “para o bem da sociedade, os conhecimentos do povo não
podem ir além do necessário para a sua própria ocupação cotidiana” (LEHER,
2005, p.07).
No
Brasil, exemplar e dramaticamente atual é o discurso do então senador Oliveira
Junqueira que, em 1879, defendia que “certas matérias, talvez, não sejam
convenientes para o pobre; o menino pobre deve ter noções muito simples”
(JUNQUEIRA, [20--]).
Esta
concepção adentrou o século XX, no qual podemos identificar o ostensivo
processo de negação a oportunidades educacionais à população pobre que primem
pela boa qualidade e que garantam o princípio iluminista de efetivo acesso ao
ler, escrever e contar para todos.
Considerando
a íntima relação entre a educação escolar, o acesso e o uso de livros e a
existência de locais públicos que disponham de acervo com livre acesso à
população (as bibliotecas), fornecemos um dado histórico bastante atual. Numa
conferência cujo tema foi “O Problema do Livro Nacional”, realizada em 1 de
agosto de 1938, no Instituto de Estudos Brasileiros, Levi Carneiro (1938), em
sua explanação, afirmou que dos então 1478 municípios brasileiros, apenas 62
possuíam bibliotecas municipais.
Apesar
das críticas de Levi Carneiro à escassa quantidade de bibliotecas no Brasil,
este apontava como problemático o fato de editores insistirem em traduzir obras
estrangeiras que, a seu ver, deveriam ser lidas na língua em que foram criadas,
com valorização e destaque para as obras escritas em francês. Isto é, a leitura
não era considerada uma atividade a ser desenvolvida por todas as pessoas, o
que demonstra uma despreocupação sobre a questão do analfabetismo.
Sobre
a questão dos baixos indicadores de leitura e escritura no Brasil, inferimos
que estes têm a ver, dentre outras questões de ordem estrutural, com o escasso
acesso aos livros. Historicamente o pequeno número de bibliotecas pode
exemplificar a persistente negação do acesso a este privilegiado instrumento de
aquisição de saber. A marca dos jesuítas no Brasil, enquanto os primeiros
educadores do país recém-ocupado pelos europeus, que impuseram a difusão da
cultura ocidental pela oralidade, também pode explicar o afastamento da
população do hábito da leitura.
No
início do século XX, era o Brasil, dentre os países da América Latina, o que
menos possuía bibliotecas, e no seu final a marca do insucesso do ensino da
leitura ainda se expressava pelo grande número de repetentes e evadidos nas
séries iniciais do ensino fundamental.
Na terceira
edição da pesquisa intitulada Retratos da Leitura no Brasil, Pansa (2011)
afirma que
Há precondições para que se fomente a leitura e se
crie as condições para o acesso e o interesse pelo livro – não basta investir em
bibliotecas se o leitor não for cativado. Não será possível cativar leitores se
ele não compreende o que lê (p.9).
Entendemos que
tal afirmação revela a seriedade da questão da incipiência da leitura no
Brasil, da qual uma expressão tem sido o escasso acesso e o precário uso do
livro. Na mencionada pesquisa, quando da abordagem sobre a frequência com que,
nos distintos níveis de escolaridade, as pessoas liam livros, encontramos os
resultados relacionados na tabela que segue.
Tabela 1 Média de Livros Lidos nos
Últimos 3 Meses por Escolaridade
O que se leu
|
Até 4ª série
|
5ª a 8ª série
|
Ensino médio
|
Educação superior
|
Livros inteiros
|
0,76
|
0,71
|
0,88
|
1,84
|
Livros em partes
|
0,95
|
1,12
|
1,03
|
1,93
|
Livros indicados pela escola
|
0,99
|
1,01
|
0,5
|
1,31
|
Livros por iniciativa própria
|
0,72
|
0,83
|
1,38
|
2,46
|
Bíblia
|
0,16
|
0,17
|
0,21
|
0,21
|
Fonte: FUNDAÇÃO PRÓ-LIVRO Pesquisa
Retratos da Leitura no Brasil, 2011, p.64.
Verificamos que
em todos os níveis de escolarização se lê muito pouco e, nas séries que compõem
o ensino fundamental, os indicadores caem ainda mais quando se referem à
leitura de livros inteiros e por iniciativa própria. Acresce-se que das pessoas
pesquisadas, quando perguntadas sobre qual o último livro que leu ou estaria
lendo, 51% responderam “que não estão lendo nenhum ou não se lembram do último
livro que leram” (FUNDAÇÃO PRÓ-LIVRO, 2011, p.83).
Acompanhando a observação de Pansa (2011),
retomamos a questão sobre quem cativa e influencia, no Brasil, as pessoas para
a leitura. Tal pergunta obteve como respostas que principalmente a professora
ou professor, a mãe (ou responsável feminino) e o pai (ou responsável
masculino) são os principais incentivadores. Ao serem comparados os anos de
2007 e de 2011 temos os seguintes dados:
Tabela 2 Quem Mais Influenciou a
Ler (%)
|
2007
|
2011
|
Professora ou professor
|
33
|
45
|
Mãe ou resp. do sexo feminino
|
49
|
43
|
Pai ou resp. Do sexo masculino
|
30
|
17
|
Fonte: FUNDAÇÃO
PRÓ-LIVRO Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 2011, p.99.
A partir destas
informações podemos tirar algumas conclusões preliminares. A primeira é que
tanto o ambiente escolar, representado pelos professores, como as mães, ainda
que precariamente, são as principais influenciadoras da leitura. Os professores
pelo cumprimento básico da função precípua da escola. As mães (ou outras
mulheres cuidadoras) porque, no Brasil, ainda lhes cabe a tarefa de criação e
cuidados para com as crianças e os jovens. Quanto à participação dos pais
percebemos que estes se encontram percentualmente muito abaixo dos primeiros
sujeitos mencionados.
A segunda
conclusão a que chegamos está relacionada à redução da influência materna (-6%)
e da paterna (-13%), entre os anos de 2007 e 2011, período este que coincide
com o crescimento da influência do professor (+13%).
Ao entendermos
que no Brasil se lê pouco e os pais e os professores lideram o estímulo à
leitura, precisamos captar quais fatores se destacam como impeditivos ou
desestimuladores da leitura. Para tanto, apresentamos a tabela que segue.
Tabela 3 Dificuldades Que Tem ao
Ler (%)
Dificuldades
|
2007
|
2011
|
Lê muito devagar
|
16
|
19
|
Não tem paciência para ler
|
11
|
20
|
Tem problema de visão ou outras
limitações físicas
|
8
|
13
|
Não tem concentração suficiente
para ler
|
7
|
12
|
Não compreende a maior parte do
que lê
|
7
|
8
|
Não sabe ler
|
15
|
9
|
Não tem dificuldade alguma
|
48
|
43
|
Fonte: FUNDAÇÃO
PRÓ-LIVRO Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 2011, p.128.
Com estes curiosos
dados devemos realizar algumas inferências. Primeiramente, agrupamos os
resultados das pessoas que “não tem paciência para ler” com os de quem “não tem
concentração suficiente para ler”, visto que acreditamos que a falta de
paciência implica em certa falta ou dificuldade de concentração na leitura.
Somados, tais dados mostram em 2007, 18% das pessoas entrevistadas, enquanto
que em 2011 este percentual “saltou” para 32%. O que pode ter havido? As
pessoas ficaram mais impacientes e menos concentradas? Tais justificativas
podem esconder o fato de que estas pessoas recearam assumir que não gostam de
ler?
Também agrupamos
aqueles que afirmaram que “não compreendem a maior parte do que lê” (que
entendemos serem portadores de algum grau de analfabetismo) e os que
assumidamente “não sabem ler”. Em 2007, juntos somavam 22%, e em 2011, 17%.
A partir destas
informações, e considerando que o percentual de pessoas que responderam não
saberem ler teve importante redução de 6%, somos levados a supor que esta
diferença pode representar a passagem destas pessoas da condição de analfabetos
absolutos para a de analfabetos funcionais.
Entretanto,
ainda chegamos a entender que se agruparmos todos os sujeitos que apresentaram
algum tipo de dificuldade que tem ao ler, em 2007 estes somaram 64% e, em 2011,
81%. Isto indica que no período de 4 anos em muito aumentou o contingente de
sujeitos que justificaram não terem desenvolvido o hábito da leitura. Além
disso, neste período, houve redução no percentual de pessoas que afirmaram não
terem nenhuma dificuldade ao lerem.
Tais informações
expressam o drama que envolve a situação da leitura no Brasil, o que demonstra
que deveremos procurar compreender que este fenômeno não pode ser explicado e
entendido apenas relacionando-o à escola, dado que esta reflete as relações
estabelecidas no contexto mais geral da sociedade.
Diante
da situação exposta, quando tencionamos desenvolver um processo de organização
e de catalogação das obras pertencentes à nossa biblioteca, o fizemos para
torná-la um instrumento que possibilitasse situações de leitura, de uso
irrestrito pela garantia do direito universal de acesso ao saber construído.
Inegável também é o fato de que tal atividade acrescentou conhecimento prático
imprescindível à formação de estudantes de graduação em Pedagogia e Letras.
Catalogação como atividade
extensionista: impasses e possibilidades
A
consideração da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão foi o fio
condutor da nossa intervenção, visto que a catalogação do acervo constitui um
momento necessário à consolidação e funcionamento da Biblioteca Popular Riacho
do Navio.
Partimos
do entendimento de que uma biblioteca deve ser um espaço de irradiação e
desenvolvimento de ações que, em última instância, promovam o hábito da
leitura, da escrita pelo cultivo de atitudes criativas, questionadoras do real
aparente; em suma, pelo desenvolvimento da 'curiosidade epistemológica' que nos
impulsiona a compreender o que, em geral, sequer supomos a existência, apesar
de estarem sempre ao nosso lado marcando as nossas práticas, os nossos
posicionamentos, as nossas 'verdades'.
Compor
um grupo formado por alunos e alunas interessados em compreender o alcance e as
possibilidades da existência do tipo de biblioteca como a que ainda estamos
montando, que vencem distâncias, dificuldades, impasses, é um desafio que nos
coloca como educadores/educandos, numa síntese que só a atividade extensiva
pode fornecer.
Nesta
perspectiva, concordamos com Carvalho (2011) quando entende a extensão
universitária
Como prática
acadêmica que interliga a universidade nas suas atividades de ensino e de
pesquisa com as demandas da maioria da população, possibilita essa formação do
profissional cidadão e se credencia cada vez mais junto à sociedade como espaço
privilegiado de produção do conhecimento significativo para a superação das
desigualdades sociais existentes (p.4).
Isto
é, a extensão universitária se coloca para além do mero assistencialismo e, no
nosso caso, apontou para uma real integração do que se produz no setor
acadêmico com as demandas da população, mesmo que estas não se coloquem
explicitamente no nível das consciências dos setores populares da sociedade, em
geral tão apegados à expressão fenomênica e imediata do real.
Este
foi o espírito que nos moveu quando iniciamos o processo de catalogação. E no
início não considerávamos que este se transformaria num projeto de extensão. O
víamos como uma pré-condição para o funcionamento da biblioteca. Em dado
momento, junto a um pequeno número de alunos que nos acompanhava desde quando a
fundação da biblioteca ainda era uma ideia sem formato e contornos definidos,
saltou à nossa frente a questão crucial e que serviu de impulso à formulação da
ação de catalogação como atividade extensionista: como vamos organizar tantos
livros?
Tomamos
consciência de que a organização do acervo necessitaria de esforço coletivo por
compreender e realizar uma atividade que nos era estranha.
Este
impasse inicial despertou-nos a compreensão de que não possuíamos conhecimentos
suficientes para realizar tal empreitada. Nomes de pessoas vinculadas ao curso
de Biblioteconomia foram sugeridos, visita à coordenação deste curso foi
realizada. Tudo no intuito de conseguirmos obter apoio técnico de quem havia
construído competência a respeito da organização de bibliotecas. Nossas
tentativas resultaram vãs.
Ocorre
que enquanto nos frustrávamos com as tentativas mal sucedidas de apoio e
orientação por pessoas da área de Biblioteconomia, um aluno encontrou na
internet o Programa Biblivre 3, “um software
para catalogação e a difusão de acervos de bibliotecas públicas e privadas, de
variados portes” e com acesso franqueado a quem por ele se interesse e queira
utilizá-lo.
Iniciamos
nossas atividades com uma oficina sobre catalogação na qual o grupo formado
pela coordenadora, por estudantes dos cursos de Letras e de Pedagogia, além de
pessoas vinculadas a outras instituições estudaram o conteúdo do BIBLIVRE 3,
que constitui num “conjunto de programas baseados na WEB e escritos em JAVA,
desenvolvidos pelo projeto Biblioteca Livre Internacional”.
O BIBLIVRE 3, elaborado pelo
Banco ITAÚ e a Biblioteca Nacional, com apoio do Ministério da Cultura, através
da Lei Rouanet (Lei 8.313/91) é uma versão ampliada do sistema de automação de
bibliotecas, no qual está franqueado o seu uso e instalação e utilização em
bibliotecas.
Após o estudo do BIBLIVRE 3, realizamos um
treino experimental catalogando livros, algumas monografias, teses e dissertações,
e que serviu para que desenvolvêssemos habilidades necessárias ao trabalho que
nos esperava na Biblioteca Popular Riacho do Navio.
Dirigimos-nos a Piranhas para
iniciar o efetivo processo de catalogação do acervo da biblioteca. E lá nos deparamos com limitações até então
não consideradas. A primeira diz respeito à acomodação de 18 pessoas em uma
casa de apenas dois quartos. Estes, assim como a sala e o corredor, estavam
abarrotados de livros, revistas, caixas.
Aqueles alunos e alunas que lá
estavam enfrentaram bravamente o desconforto, as dúvidas surgidas, as panes no único
computador de que dispúnhamos.
O fato é que após três
desconfortáveis e calorentos dias, em torno de 520 obras haviam sido
catalogadas. Foi pouco? Certamente que sim. Mas foi enorme o esforço e as
aprendizagens construídas.
É uma unanimidade entre as
pessoas que compõem o grupo a mudança do nosso comportamento ao manusearmos uma
obra. Todas e todos nós a partir de então observamos, com outros olhos e
compreensão, as fichas catalográficas e aqueles códigos pertinentes a sistemas
de catalogação: a Classificação Decimal de Dewey (CDD) e a Classificação
Decimal Universal (CDU).
No processo de
catalogação por nós adotado incluímos: título da obra, autor, data de
publicação, local de publicação, ISBN, serial, exemplar. Entendemos que tal
classificação ainda inclui poucos elementos referentes às obras, mas também
sabemos que estas podem ser facilmente acessadas em nosso sistema.
Também nos surpreendemos quando
fizemos contato com a coordenadora das bibliotecas da Secretaria de Estado da
Cultura de Alagoas e que prontamente se dispôs a auxiliar-nos. O primeiro
contato presencial aconteceu quando da ida do primeiro grupo de catalogação.
Antes de chegarmos em Piranhas dirigimo-nos a Maceió, fomos por ela recebidos e
deste encontro resultou a publicação de matérias nos jornais Tribuna de Alagoas
e Alagoas Boreal[1].
Nestas matérias a Biblioteca Popular Riacho do Navio é considerada a primeira
biblioteca popular do estado de Alagoas.
Entretanto, apesar da novidade que
esta atividade ensejava, observamos o esvaziamento e a consequente necessidade
de agregar outras alunas e alunos. Nas tentativas de explicação deste fenômeno
enumeramos as que consideramos importantes de serem avaliadas: 1- os alunos se
afastaram porque faltou um pulso forte da coordenadora; 2- os alunos se
afastaram porque, em sua expressiva maioria, foram incorporados a outros
projetos de extensão e de pesquisa nos quais se tornaram bolsistas.
Sem desconsiderar o primeiro
argumento por entendermos de modo distinto o papel de uma liderança num grupo
de extensão, destacamos que a falta de financiamento deste projeto emergiu como
um fator que muito contribuiu para o surgimento desta dificuldade. Porém, este
mesmo “entra e sai” de alunos e alunas forneceu uma multiplicidade de contatos
e relações de uma riqueza até então não experimentadas.
Na Universidade Federal da Paraíba
encontramos um apoio discreto e efetivo da professora Bernardina Carvalho, da
Pro Reitoria de Extensão, que nos municiou com textos, materiais para a
biblioteca, orientou desde o início sobre o processo de formulação do nosso
projeto. Mais: ofereceu-nos segurança e confiança de que a catalogação e a
pesquisa que iniciamos são possíveis, viáveis e necessárias.
Não podemos deixar de mencionar o
apoio da direção do Centro de Educação da UFPB que, em dois momentos, nos
forneceu transporte para conduzir o grupo a Piranhas e Maceió, diárias para a
coordenadora do projeto (que foram revertidas em finanças que custearam
aquisição de materiais necessários) e estantes que, recuperadas, abrigam hoje
parte do acervo já catalogado. Apesar deste inestimável apoio também ouvimos a
observação de que a ‘biblioteca é muito longe’. ‘Ela deveria ser num lugar na
Paraíba, mais próximo de nós geograficamente’.
Concordamos que a biblioteca está situada
num lugar bastante distante de João Pessoa. Discordamos da orientação de
trazê-la mais para perto. Não! O que precisamos é fundar outras bibliotecas, em
todos os lugares onde exista a necessidade de formar leitores, melhorar os
indicadores de desempenho escolar, colaborar com o despertamento de pessoas
para realizarem uma consequente e consistente crítica do real que reclama
transformação, mesmo que isto não confira a visibilidade que alguns desejam e
colocam como critério primeiro.
E isto já está acontecendo. Um
dos nossos alunos tenta hoje transformar um espaço ocioso na igreja que
frequenta, situada num bairro popular de João Pessoa, numa biblioteca aberta a
toda a comunidade.
Esta atitude, que consideramos
uma expressão do caráter multiplicador da nossa experiência, parece-nos
confrontar com o descuido de quem participa da gestão de grandes bibliotecas
que em lugar de ampliar a oferta deste imprescindível serviço tem atuado no
sentido de restringi-lo. Exemplar é o caso da Biblioteca Nacional, que desde
14/07/2013 deixou de abrir para o público aos domingos e feriados, além de
proibir o uso de canetas por seus usuários e não disponibilizar de meios para
que estes recarreguem seus notebooks.
De acordo com o Censo Nacional das Bibliotecas Municipais, realizado em 2010,
apenas 1% das bibliotecas funciona nos fins de semana, o que contraria a
possibilidade de aumento de sua frequência, pela consideração de que a maior
parte das pessoas não trabalha aos domingos, por exemplo.
Por fim destacamos que no período
em que durou o projeto (que será concluído em 30/11/2013) conseguimos catalogar
1000 obras. Muito há ainda por fazer, mas esbarramos na falta de financiamento
para garantir bolsas para os extensionistas, transporte para os grupos de catalogação.
Concluir
é indicar que estamos no começo
Hoje, com a nossa biblioteca
ainda sem estar funcionando, apesar de ter estatuto e regimento registrados e
dispor de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), nos
defrontamos com a seguinte situação: temos livros, dispomos de espaço físico,
há o reconhecimento geral da importância desta iniciativa, existe uma pesquisa em
andamento cujo objetivo central é investigar o impacto que o funcionamento de
uma biblioteca viva e participativa tem para a superação dos analfabetismos
absoluto e funcional. Não temos financiamento. Assim, não conseguimos dar
sequência ao nosso projeto de contribuir com as pessoas de Piranhas, que
precisam se emancipar.
Persistimos com a ideia de que
fazer funcionar nossa biblioteca popular é necessário. E entendemos este
movimento nos inspirando na poesia de João Cabral de Melo Neto, intitulada
Tecendo a Manhã:
Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
|
|
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão. IBGE. Censo
demográfico 2010. Brasília, 2011. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Resultados_Gerais_da_Amostra/resultados_gerais_amostra.pdf.
Acesso em: 12 ago. 2012>.
_______.
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. IBGE. Cidades – 2013. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=270710&search=alagoas|piranhas|infograficos:-dados-gerais-do-municipio>.
Acesso em: 30 set. 2013.
_______.
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. IBGE. PNAD 2012. Disponível em: <www.ibge.gov.br/home/estatistica/.../sinteseindicsociais2012/default.shtm>. Acesso em: 5 out. 2013.
CARNEIRO,
Levi. O problema do livro nacional.
Rio de Janeiro: [s.n.], 1938. Disponível em:
http://www.ebooksbrasil.org/elibris/linacional/.html. Acesso em: 20 jun. 2007.
CARVALHO,
Bernardina Silva de. Princípios
norteadores para as ações de extensão da UFPB. João Pessoa, 2011. (mimeo).
GASPARI.
Elio. JORNAL DO COMMERCIO. Recife.A
viúva na farra da feira de Frankfurt. 6 out. 2013. Brasil, p.12.
JUNQUEIRA, Oliveira. História da educação no Brasil: período imperial (1822-1888).
Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb05.htm#texto>.
Acesso em: 14 jan. 2008.
LEHER,
Roberto. O público como expressão das
lutas sociais: dilemas nas lutas sindicais e dos movimentos sociais frente
ao desmonte neoliberal da educação pública. Disponível em:
<www.outrobrasil.net>. Acesso em: 15 out. 2011.
PANSA, Karine. Prefácio. Pesquisa Retratos da Leitura no
Brasil. 3.ed. 2012. Disponível em: <http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/2834_10.pdf>. Acesso em: 30
ago. 2012.
PRIMEIRO CENSO
NACIONAL DAS BIBLIOTECAS PÚBLICAS MUNICIPAIS COLOCA OSASCO ENTRE OS PIORES
RESULTADOS. Disponível em: <http://bibmais.wordpress.com/2013/02/05/primeiro-censo-nacional-das-bibliotecas-publicas-municipais/>. Acesso em 12
jul. 2013.
SABIN/COPPE-UFRJ.
BIBLIVRE 3. Instituto Itaú Cultural.
Rio de Janeiro, [201-]. Disponível em:
<http://www.biblivre.org.br/joomla/>. Acesso em: mai. 2013.
TIEZZI,
Ricardo. Brasil analfabetizado.
2008. Disponível em:
<http://www.geracaobooks.com.br/literatura/texto1.php>. Acesso em: 16
jan. 2008.
UOL.
Pesquisa revela o grau de instrução dos
eleitores. 31 out. 2011. Disponível em: <http://mais.uol.com.br/view/99at89ajv6h1/pesquisa-do-tse-revela-o-grau-de-instrucao-dos-eleitores-0402993660D0A993A6?types=A&>.
Acesso em: 27 ago. 2013.
0 comentários:
Postar um comentário