domingo, 23 de março de 2014

BIBLIOTECA POPULAR, CATALOGAÇÃO DE ACERVO E DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA

BIBLIOTECA POPULAR, CATALOGAÇÃO DE ACERVO E DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA.
Judy Mauria Gueiros Rosas


                                                                   RESUMO

Apresentamos nossa trajetória de pessoas leigas ao serem desafiadas a desenvolver o processo de organização das obras de uma biblioteca deflagrado com o projeto de extensão Catalogação do Acervo da Biblioteca Popular Riacho do Navio. Discutimos aspectos teóricos relacionados à questão do analfabetismo e da subescolarização, a situação da leitura e a importância da biblioteca para o desenvolvimento do hábito da leitura no Brasil. Descrevemos procedimentos e impasses experimentados no processo de catalogação e expomos nossas impressões e conclusões considerando a íntima relação entre pesquisa e extensão popular.


Apresentação

O acaso nos trouxe, nos idos do ano de 2005, a possibilidade de possuir uma casa numa linda e singela cidade do sertão alagoano, situada às margens do Rio São Francisco, e que desde os anos finais da década de 1990 foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como patrimônio paisagístico nacional. Esta é Piranhas, cidade que hoje conta, segundo dados censitários oficiais, com pouco mais de 23 mil habitantes (IBGE, 2013).
            Então encantadas com tudo que se descortinava aos nossos olhos de turistas, vimo-nos diante de uma ‘transação comercial’ para lá de tentadora acompanhada de certa perplexidade: como pode um lugar tão lindo e uma casinha construída no fim do século XIX se entregarem para nós a tão módico preço? 
            Aquilo que inicialmente se tornaria um lugar para aquietar o espírito em descansos de férias, com o passar dos anos foi revelando suas peculiaridades. As mulheres, os homens, de todas as idades nos encheram de curiosidade e, em pouco tempo, descortinavam-se, diante de nós, os paradoxos, os conflitos. A beleza cedeu lugar aos reais protagonistas daquela história de cangaço e cangaceiros, de coronéis e coronelismo.
            Assim, nos embrenhamos em descobrir e compreender Piranhas a partir dos seus indicadores sociais de qualidade de vida, de emprego, de educação.
            Começamos a entender concretamente o que as ruas e as pessoas daquele lugar há muito já nos anunciavam: existia (e existe!) uma quantidade tão significativa de pessoas analfabetas (crianças, jovens e adultas) que não nos deixava sossegadas.
O desenho que construímos para a nossa vida de intelectual e de pessoa no mundo, nos impedia de só olhar, só saber. Dizemos isto porque compartilhamos do entendimento de que o conhecimento nos compromete e nos impulsiona a agir de maneira a contribuirmos com a superação das situações problemáticas com as quais nos deparamos. Ou seja, entendemos que nossa formação não encerra na mera prática profissional. Ela deve estar entranhada em nossas práticas e deve ser orientada por nossas concepções que são políticas, ideológicas e servem de fundamento às nossas escolhas. Escolhemos nos juntar à maioria subescolarizada, não leitora, não escritora, ao considerarmos que, muito mais dramático que a equivocada constatação de uma situação de exclusão, existe uma real inclusão cuja subalternidade se expressa através da pobreza, do analfabetismo, da ignorância.
Foi assim, quando percebemos que a casinha passava a maior parte dos anos que se seguiam fechada e sem utilidade, que decidimos, junto a alunos, alunas, amigas e amigos de vida, transformar aquele espaço em uma biblioteca popular, hoje registrada com o nome Biblioteca Popular Riacho do Navio.
A preocupação com a situação do insucesso escolar e a relevância da leitura para a superação dos analfabetismos absoluto e funcional constituiu, portanto, o motivo principal pelo qual fundamos esta biblioteca.
Registrada a biblioteca, realizamos campanha de doação de livros com a indicação de que qualquer um teria utilidade. Interessávamo-nos, naquele momento, em juntar obras que pudessem ser manuseadas, lidas, utilizadas por qualquer pessoa que tomasse a iniciativa de se aventurar no mundo dos livros e da leitura e que atendessem aos interesses mais diversos.
Após ter conduzido cerca de 30 alunas e alunos dos cursos de Pedagogia e de Letras da UFPB, numa atividade denominada “viagem exploratória”, na qual propúnhamos que tais sujeitos conhecessem a cidade de Piranhas, com o intuito de juntos termos ideias sobre a realização de intervenções que contribuíssem com a melhoria dos indicadores de educação, especialmente das escolas públicas deste município.
Nesta viagem levamos cerca de 3.000 livros que arrecadamos numa campanha de doações realizada entre alunos e amigos. Mais que uma campanha de doação de livros, tal experiência serviu para observarmos um real ‘movimento’ de pessoas com diversos perfis ideológicos, religiosos, educacionais, em torno do problema da leitura no Brasil. Em pouco tempo conseguimos formar significativo acervo para o modelo de biblioteca popular a que nos propusemos inicialmente, e que conta com livros das mais distintas áreas de conhecimento.
É certo afirmar que naquele momento não havíamos nos dado conta da difícil tarefa de organizar estes livros. Tomados de perplexidade nos perguntávamos: como arrumar tais obras?
A necessidade de organizar o acervo da nossa biblioteca constituiu o momento de deflagração do projeto Catalogação do Acervo da Biblioteca Popular Riacho do Navio, uma experiência tão marcante que precisa ser relatada.
É, portanto, nossa intenção no presente artigo apresentar nossa trajetória de pessoas leigas em relação ao processo de organização de uma biblioteca deflagrado com o projeto de extensão Catalogação do Acervo da Biblioteca Popular Riacho do Navio.
Para que isto seja possível organizamos o texto da maneira que segue: na primeira parte discutiremos aspectos teóricos relacionados à questão do analfabetismo e da subescolarização e a situação da leitura e da importância da biblioteca para o desenvolvimento do hábito da leitura no Brasil; a segunda parte consiste em descrever os procedimentos e impasses por nós experimentados no processo de catalogação do acervo da bibiblioteca Popular Riacho do Navio, local onde no fim expomos nossas impressões e conclusões.

Analfabetismos, leitura, biblioteca
Piranhas, cidade situada no sertão alagoano, apesar de ter despontado nos últimos anos como o 2º mais importante destino turístico do estado, em virtude da beleza natural e da importância histórica relacionada ao ciclo do cangaço, é detentora do perverso percentual de 37% de analfabetos com 15 anos de idade e mais, como atesta o Censo Demográfico de 2010 (IBGE). 
Assim indagamos: que tipo de desenvolvimento foi desencadeado neste lugar que não tem servido para promover acesso a direitos básicos como o ler e escrever para a maioria das pessoas que lá vivem?
A fundação da Biblioteca Popular Riacho do Navio se deveu principalmente pela consideração da importância da frequência a espaços como este para o desenvolvimento do hábito e uso da leitura e escritura e suas implicações, na perspectiva não só da criação do hábito da leitura e melhora da utilização do texto escrito, mas também das consequências imediatas que tais práticas possam ensejar: uma compreensão do real mais aguda, movimento este que se coloca como pré-condição para que desencadeemos nossa emancipação.
Ocorre que a problemática do analfabetismo e da subescolarização não é um fenômeno que se manifesta apenas neste município. De acordo com dados oficiais, a maior parte da população no Brasil não consegue sequer completar as séries que compõem o ensino fundamental, e os dados resultantes do Índice de Desenvolvimento da Educação no Brasil (IDEB) nos revelam que as crianças e jovens brasileiros estão longe de usar a leitura como efetiva ferramenta de comunicação e de compreensão do real. 
Adentramos o século XXI com mais de uma dezena de milhões de jovens e adultos analfabetos absolutos e com outro tipo de analfabetismo que afeta aqueles que estudaram, mas não construíram habilidades de leitura e escrita que lhes permitam utilizá-las cotidianamente como instrumentos de comunicação. E esta situação afeta a maior parte das pessoas que cursam ou cursaram o ensino fundamental: o chamado analfabetismo funcional.
            Segundo Tiezzi (2008), o conceito de analfabeto funcional foi criado em 1978, pela UNESCO, “para referir-se a pessoas que, mesmo sabendo ler e escrever algo simples, não têm as habilidades necessárias para viabilizar o seu desenvolvimento pessoal e profissional”. Ou seja, o analfabeto funcional lê, mas não compreende o que leu, conhece os números, mas mal sabe utilizar as operações fundamentais da matemática.
            Situação exemplar pode ser encontrada ao focalizarmos o eleitorado brasileiro. Segundo notícia que revela os resultados de pesquisa realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral, dos 135 milhões de eleitores, mais de 44 milhões não concluíram o ensino fundamental, 20% são analfabetos absolutos ou funcionais, 13% concluíram o ensino médio e menos de 4% concluiu algum curso superior (UOL, 2011).
Também Tiezzi nos informa que “o Brasil começa o século XXI com um número maior de analfabetos funcionais do que tinha de analfabetos absolutos no começo do século passado” (2008). Isto pode ser indicador de que a ampliação do acesso à escola para os trabalhadores e trabalhadoras e seus filhos e filhas não garantiu o fornecimento da “cesta básica” de conhecimentos considerados necessários.
De acordo com o Censo Demográfico de 2010 (IBGE), ao considerar as pessoas a partir de 10 anos de idade sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto chega-se ao percentual de 50,2%. Mais dramático ainda é o reconhecimento de que a região do Brasil (Sudeste) com os menores índices a este respeito conta com absurdos 44,8% da população incluída na citada faixa etária. No outro “extremo”, a Região Nordeste, apresentam-se os piores indicadores de pessoas sem instrução ou com ensino fundamental incompleto: 59,1% (p.87).
Ora, se desde a emergência dos governos da ditadura civil militar foi deflagrado um processo de ampliação da oferta de vagas nas escolas públicas e, em decorrência, crescentemente observamos a universalização deste acesso às pessoas constitucionalmente incluídas como em idade escolar, não tememos concluir que tais sujeitos frequentaram a escola e não lhes foi garantido o conjunto de saberes e habilidades pertinentes ao ensino fundamental.
Ao nos referirmos à universalização do acesso à escola e a partir das informações divulgadas na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2012, podemos observar que ainda não concluímos plenamente este acesso, visto que dos 44,8 milhões de crianças e adolescentes brasileiros de 4 a 17 anos de idade, apenas 41,5 milhões estão estudando, o que revela que mais de 3 milhões destes sujeitos encontram-se fora da escola.  No que diz respeito à faixa etária de 15 a 17 anos, que somam no Brasil 10,4 milhões de pessoas, divulgou-se que quase dois milhões estão sem estudar (IBGE, PNAD 2012).
Daí perguntarmos: que tipo de proteção e que mecanismos de obrigatoriedade da frequência à escola vem sendo desenvolvidos no Brasil que possibilitam tão significativa quantidade de crianças e jovens não frequentarem a escola? Que projeto de universalização vem sendo implementado que não absorve a totalidade dos sujeitos situados na minoridade?
Inegavelmente o analfabetismo absoluto e o funcional têm sido produzidos no sistema escolar público brasileiro, o que faz perpetuar o preconceito e a falsa impressão de que estes correspondem a características individuais de pessoas menos civilizadas ou mesmo que a inteligência seja um atributo natural e inato.
A instrução do povo, entretanto, desde as primeiras luzes da sociedade moderna, nunca foi uma unanimidade entre os burgueses. Alguns questionavam o perigo da oferta de escola para todos com indagações do tipo: “como podemos ser felizes se estamos rodeados por um povo que lê?”. Ou, como defendido naquela época, e ainda se faz tão atual: “para o bem da sociedade, os conhecimentos do povo não podem ir além do necessário para a sua própria ocupação cotidiana” (LEHER, 2005, p.07).
No Brasil, exemplar e dramaticamente atual é o discurso do então senador Oliveira Junqueira que, em 1879, defendia que “certas matérias, talvez, não sejam convenientes para o pobre; o menino pobre deve ter noções muito simples” (JUNQUEIRA, [20--]).
Esta concepção adentrou o século XX, no qual podemos identificar o ostensivo processo de negação a oportunidades educacionais à população pobre que primem pela boa qualidade e que garantam o princípio iluminista de efetivo acesso ao ler, escrever e contar para todos.
Considerando a íntima relação entre a educação escolar, o acesso e o uso de livros e a existência de locais públicos que disponham de acervo com livre acesso à população (as bibliotecas), fornecemos um dado histórico bastante atual. Numa conferência cujo tema foi “O Problema do Livro Nacional”, realizada em 1 de agosto de 1938, no Instituto de Estudos Brasileiros, Levi Carneiro (1938), em sua explanação, afirmou que dos então 1478 municípios brasileiros, apenas 62 possuíam bibliotecas municipais.
Apesar das críticas de Levi Carneiro à escassa quantidade de bibliotecas no Brasil, este apontava como problemático o fato de editores insistirem em traduzir obras estrangeiras que, a seu ver, deveriam ser lidas na língua em que foram criadas, com valorização e destaque para as obras escritas em francês. Isto é, a leitura não era considerada uma atividade a ser desenvolvida por todas as pessoas, o que demonstra uma despreocupação sobre a questão do analfabetismo.
Sobre a questão dos baixos indicadores de leitura e escritura no Brasil, inferimos que estes têm a ver, dentre outras questões de ordem estrutural, com o escasso acesso aos livros. Historicamente o pequeno número de bibliotecas pode exemplificar a persistente negação do acesso a este privilegiado instrumento de aquisição de saber. A marca dos jesuítas no Brasil, enquanto os primeiros educadores do país recém-ocupado pelos europeus, que impuseram a difusão da cultura ocidental pela oralidade, também pode explicar o afastamento da população do hábito da leitura.
No início do século XX, era o Brasil, dentre os países da América Latina, o que menos possuía bibliotecas, e no seu final a marca do insucesso do ensino da leitura ainda se expressava pelo grande número de repetentes e evadidos nas séries iniciais do ensino fundamental.
Na terceira edição da pesquisa intitulada Retratos da Leitura no Brasil, Pansa (2011) afirma que
Há precondições para que se fomente a leitura e se crie as condições para o acesso e o interesse pelo livro – não basta investir em bibliotecas se o leitor não for cativado. Não será possível cativar leitores se ele não compreende o que lê (p.9).
Entendemos que tal afirmação revela a seriedade da questão da incipiência da leitura no Brasil, da qual uma expressão tem sido o escasso acesso e o precário uso do livro. Na mencionada pesquisa, quando da abordagem sobre a frequência com que, nos distintos níveis de escolaridade, as pessoas liam livros, encontramos os resultados relacionados na tabela que segue.
Tabela 1 Média de Livros Lidos nos Últimos 3 Meses por Escolaridade
O que se leu
Até 4ª série
5ª a 8ª série
Ensino médio
Educação superior
Livros inteiros
0,76
0,71
0,88
1,84
Livros em partes
0,95
1,12
1,03
1,93
Livros indicados pela escola
0,99
1,01
0,5
1,31
Livros por iniciativa própria
0,72
0,83
1,38
2,46
Bíblia
0,16
0,17
0,21
0,21
Fonte: FUNDAÇÃO PRÓ-LIVRO Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 2011, p.64.
Verificamos que em todos os níveis de escolarização se lê muito pouco e, nas séries que compõem o ensino fundamental, os indicadores caem ainda mais quando se referem à leitura de livros inteiros e por iniciativa própria. Acresce-se que das pessoas pesquisadas, quando perguntadas sobre qual o último livro que leu ou estaria lendo, 51% responderam “que não estão lendo nenhum ou não se lembram do último livro que leram” (FUNDAÇÃO PRÓ-LIVRO, 2011, p.83).
 Acompanhando a observação de Pansa (2011), retomamos a questão sobre quem cativa e influencia, no Brasil, as pessoas para a leitura. Tal pergunta obteve como respostas que principalmente a professora ou professor, a mãe (ou responsável feminino) e o pai (ou responsável masculino) são os principais incentivadores. Ao serem comparados os anos de 2007 e de 2011 temos os seguintes dados:
Tabela 2 Quem Mais Influenciou a Ler (%)

2007
2011
Professora ou professor
33
45
Mãe ou resp. do sexo feminino
49
43
Pai ou resp. Do sexo masculino
30
17
Fonte: FUNDAÇÃO PRÓ-LIVRO Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 2011, p.99.
A partir destas informações podemos tirar algumas conclusões preliminares. A primeira é que tanto o ambiente escolar, representado pelos professores, como as mães, ainda que precariamente, são as principais influenciadoras da leitura. Os professores pelo cumprimento básico da função precípua da escola. As mães (ou outras mulheres cuidadoras) porque, no Brasil, ainda lhes cabe a tarefa de criação e cuidados para com as crianças e os jovens. Quanto à participação dos pais percebemos que estes se encontram percentualmente muito abaixo dos primeiros sujeitos mencionados.
A segunda conclusão a que chegamos está relacionada à redução da influência materna (-6%) e da paterna (-13%), entre os anos de 2007 e 2011, período este que coincide com o crescimento da influência do professor (+13%).
Ao entendermos que no Brasil se lê pouco e os pais e os professores lideram o estímulo à leitura, precisamos captar quais fatores se destacam como impeditivos ou desestimuladores da leitura. Para tanto, apresentamos a tabela que segue.
Tabela 3 Dificuldades Que Tem ao Ler (%)
Dificuldades
2007
2011
Lê muito devagar
16
19
Não tem paciência para ler
11
20
Tem problema de visão ou outras limitações físicas
8
13
Não tem concentração suficiente para ler
7
12
Não compreende a maior parte do que lê
7
8
Não sabe ler
15
9
Não tem dificuldade alguma
48
43
Fonte: FUNDAÇÃO PRÓ-LIVRO Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 2011, p.128.
Com estes curiosos dados devemos realizar algumas inferências. Primeiramente, agrupamos os resultados das pessoas que “não tem paciência para ler” com os de quem “não tem concentração suficiente para ler”, visto que acreditamos que a falta de paciência implica em certa falta ou dificuldade de concentração na leitura. Somados, tais dados mostram em 2007, 18% das pessoas entrevistadas, enquanto que em 2011 este percentual “saltou” para 32%. O que pode ter havido? As pessoas ficaram mais impacientes e menos concentradas? Tais justificativas podem esconder o fato de que estas pessoas recearam assumir que não gostam de ler?
Também agrupamos aqueles que afirmaram que “não compreendem a maior parte do que lê” (que entendemos serem portadores de algum grau de analfabetismo) e os que assumidamente “não sabem ler”. Em 2007, juntos somavam 22%, e em 2011, 17%.
A partir destas informações, e considerando que o percentual de pessoas que responderam não saberem ler teve importante redução de 6%, somos levados a supor que esta diferença pode representar a passagem destas pessoas da condição de analfabetos absolutos para a de analfabetos funcionais.
Entretanto, ainda chegamos a entender que se agruparmos todos os sujeitos que apresentaram algum tipo de dificuldade que tem ao ler, em 2007 estes somaram 64% e, em 2011, 81%. Isto indica que no período de 4 anos em muito aumentou o contingente de sujeitos que justificaram não terem desenvolvido o hábito da leitura. Além disso, neste período, houve redução no percentual de pessoas que afirmaram não terem nenhuma dificuldade ao lerem.
Tais informações expressam o drama que envolve a situação da leitura no Brasil, o que demonstra que deveremos procurar compreender que este fenômeno não pode ser explicado e entendido apenas relacionando-o à escola, dado que esta reflete as relações estabelecidas no contexto mais geral da sociedade.
Diante da situação exposta, quando tencionamos desenvolver um processo de organização e de catalogação das obras pertencentes à nossa biblioteca, o fizemos para torná-la um instrumento que possibilitasse situações de leitura, de uso irrestrito pela garantia do direito universal de acesso ao saber construído. Inegável também é o fato de que tal atividade acrescentou conhecimento prático imprescindível à formação de estudantes de graduação em Pedagogia e Letras. 

Catalogação como atividade extensionista: impasses e possibilidades
A consideração da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão foi o fio condutor da nossa intervenção, visto que a catalogação do acervo constitui um momento necessário à consolidação e funcionamento da Biblioteca Popular Riacho do Navio.
Partimos do entendimento de que uma biblioteca deve ser um espaço de irradiação e desenvolvimento de ações que, em última instância, promovam o hábito da leitura, da escrita pelo cultivo de atitudes criativas, questionadoras do real aparente; em suma, pelo desenvolvimento da 'curiosidade epistemológica' que nos impulsiona a compreender o que, em geral, sequer supomos a existência, apesar de estarem sempre ao nosso lado marcando as nossas práticas, os nossos posicionamentos, as nossas 'verdades'. 
Compor um grupo formado por alunos e alunas interessados em compreender o alcance e as possibilidades da existência do tipo de biblioteca como a que ainda estamos montando, que vencem distâncias, dificuldades, impasses, é um desafio que nos coloca como educadores/educandos, numa síntese que só a atividade extensiva pode fornecer.
Nesta perspectiva, concordamos com Carvalho (2011) quando entende a extensão universitária
Como prática acadêmica que interliga a universidade nas suas atividades de ensino e de pesquisa com as demandas da maioria da população, possibilita essa formação do profissional cidadão e se credencia cada vez mais junto à sociedade como espaço privilegiado de produção do conhecimento significativo para a superação das desigualdades sociais existentes (p.4).
Isto é, a extensão universitária se coloca para além do mero assistencialismo e, no nosso caso, apontou para uma real integração do que se produz no setor acadêmico com as demandas da população, mesmo que estas não se coloquem explicitamente no nível das consciências dos setores populares da sociedade, em geral tão apegados à expressão fenomênica e imediata do real.
Este foi o espírito que nos moveu quando iniciamos o processo de catalogação. E no início não considerávamos que este se transformaria num projeto de extensão. O víamos como uma pré-condição para o funcionamento da biblioteca. Em dado momento, junto a um pequeno número de alunos que nos acompanhava desde quando a fundação da biblioteca ainda era uma ideia sem formato e contornos definidos, saltou à nossa frente a questão crucial e que serviu de impulso à formulação da ação de catalogação como atividade extensionista: como vamos organizar tantos livros?
Tomamos consciência de que a organização do acervo necessitaria de esforço coletivo por compreender e realizar uma atividade que nos era estranha.
Este impasse inicial despertou-nos a compreensão de que não possuíamos conhecimentos suficientes para realizar tal empreitada. Nomes de pessoas vinculadas ao curso de Biblioteconomia foram sugeridos, visita à coordenação deste curso foi realizada. Tudo no intuito de conseguirmos obter apoio técnico de quem havia construído competência a respeito da organização de bibliotecas. Nossas tentativas resultaram vãs.
Ocorre que enquanto nos frustrávamos com as tentativas mal sucedidas de apoio e orientação por pessoas da área de Biblioteconomia, um aluno encontrou na internet o Programa Biblivre 3, “um software para catalogação e a difusão de acervos de bibliotecas públicas e privadas, de variados portes” e com acesso franqueado a quem por ele se interesse e queira utilizá-lo.
Iniciamos nossas atividades com uma oficina sobre catalogação na qual o grupo formado pela coordenadora, por estudantes dos cursos de Letras e de Pedagogia, além de pessoas vinculadas a outras instituições estudaram o conteúdo do BIBLIVRE 3, que constitui num “conjunto de programas baseados na WEB e escritos em JAVA, desenvolvidos pelo projeto Biblioteca Livre Internacional”.
O BIBLIVRE 3, elaborado pelo Banco ITAÚ e a Biblioteca Nacional, com apoio do Ministério da Cultura, através da Lei Rouanet (Lei 8.313/91) é uma versão ampliada do sistema de automação de bibliotecas, no qual está franqueado o seu uso e instalação e utilização em bibliotecas.
 Após o estudo do BIBLIVRE 3, realizamos um treino experimental catalogando livros, algumas monografias, teses e dissertações, e que serviu para que desenvolvêssemos habilidades necessárias ao trabalho que nos esperava na Biblioteca Popular Riacho do Navio.
Dirigimos-nos a Piranhas para iniciar o efetivo processo de catalogação do acervo da biblioteca.  E lá nos deparamos com limitações até então não consideradas. A primeira diz respeito à acomodação de 18 pessoas em uma casa de apenas dois quartos. Estes, assim como a sala e o corredor, estavam abarrotados de livros, revistas, caixas.
Aqueles alunos e alunas que lá estavam enfrentaram bravamente o desconforto, as dúvidas surgidas, as panes no único computador de que dispúnhamos.
O fato é que após três desconfortáveis e calorentos dias, em torno de 520 obras haviam sido catalogadas. Foi pouco? Certamente que sim. Mas foi enorme o esforço e as aprendizagens construídas.
É uma unanimidade entre as pessoas que compõem o grupo a mudança do nosso comportamento ao manusearmos uma obra. Todas e todos nós a partir de então observamos, com outros olhos e compreensão, as fichas catalográficas e aqueles códigos pertinentes a sistemas de catalogação: a Classificação Decimal de Dewey (CDD) e a Classificação Decimal Universal (CDU).
            No processo de catalogação por nós adotado incluímos: título da obra, autor, data de publicação, local de publicação, ISBN, serial, exemplar. Entendemos que tal classificação ainda inclui poucos elementos referentes às obras, mas também sabemos que estas podem ser facilmente acessadas em nosso sistema.
            Também nos surpreendemos quando fizemos contato com a coordenadora das bibliotecas da Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas e que prontamente se dispôs a auxiliar-nos. O primeiro contato presencial aconteceu quando da ida do primeiro grupo de catalogação. Antes de chegarmos em Piranhas dirigimo-nos a Maceió, fomos por ela recebidos e deste encontro resultou a publicação de matérias nos jornais Tribuna de Alagoas e Alagoas Boreal[1]. Nestas matérias a Biblioteca Popular Riacho do Navio é considerada a primeira biblioteca popular do estado de Alagoas.
            Entretanto, apesar da novidade que esta atividade ensejava, observamos o esvaziamento e a consequente necessidade de agregar outras alunas e alunos. Nas tentativas de explicação deste fenômeno enumeramos as que consideramos importantes de serem avaliadas: 1- os alunos se afastaram porque faltou um pulso forte da coordenadora; 2- os alunos se afastaram porque, em sua expressiva maioria, foram incorporados a outros projetos de extensão e de pesquisa nos quais se tornaram bolsistas.
            Sem desconsiderar o primeiro argumento por entendermos de modo distinto o papel de uma liderança num grupo de extensão, destacamos que a falta de financiamento deste projeto emergiu como um fator que muito contribuiu para o surgimento desta dificuldade. Porém, este mesmo “entra e sai” de alunos e alunas forneceu uma multiplicidade de contatos e relações de uma riqueza até então não experimentadas.
            Na Universidade Federal da Paraíba encontramos um apoio discreto e efetivo da professora Bernardina Carvalho, da Pro Reitoria de Extensão, que nos municiou com textos, materiais para a biblioteca, orientou desde o início sobre o processo de formulação do nosso projeto. Mais: ofereceu-nos segurança e confiança de que a catalogação e a pesquisa que iniciamos são possíveis, viáveis e necessárias.
            Não podemos deixar de mencionar o apoio da direção do Centro de Educação da UFPB que, em dois momentos, nos forneceu transporte para conduzir o grupo a Piranhas e Maceió, diárias para a coordenadora do projeto (que foram revertidas em finanças que custearam aquisição de materiais necessários) e estantes que, recuperadas, abrigam hoje parte do acervo já catalogado. Apesar deste inestimável apoio também ouvimos a observação de que a ‘biblioteca é muito longe’. ‘Ela deveria ser num lugar na Paraíba, mais próximo de nós geograficamente’.
            Concordamos que a biblioteca está situada num lugar bastante distante de João Pessoa. Discordamos da orientação de trazê-la mais para perto. Não! O que precisamos é fundar outras bibliotecas, em todos os lugares onde exista a necessidade de formar leitores, melhorar os indicadores de desempenho escolar, colaborar com o despertamento de pessoas para realizarem uma consequente e consistente crítica do real que reclama transformação, mesmo que isto não confira a visibilidade que alguns desejam e colocam como critério primeiro.
E isto já está acontecendo. Um dos nossos alunos tenta hoje transformar um espaço ocioso na igreja que frequenta, situada num bairro popular de João Pessoa, numa biblioteca aberta a toda a comunidade.
Esta atitude, que consideramos uma expressão do caráter multiplicador da nossa experiência, parece-nos confrontar com o descuido de quem participa da gestão de grandes bibliotecas que em lugar de ampliar a oferta deste imprescindível serviço tem atuado no sentido de restringi-lo. Exemplar é o caso da Biblioteca Nacional, que desde 14/07/2013 deixou de abrir para o público aos domingos e feriados, além de proibir o uso de canetas por seus usuários e não disponibilizar de meios para que estes recarreguem seus notebooks. De acordo com o Censo Nacional das Bibliotecas Municipais, realizado em 2010, apenas 1% das bibliotecas funciona nos fins de semana, o que contraria a possibilidade de aumento de sua frequência, pela consideração de que a maior parte das pessoas não trabalha aos domingos, por exemplo.
Por fim destacamos que no período em que durou o projeto (que será concluído em 30/11/2013) conseguimos catalogar 1000 obras. Muito há ainda por fazer, mas esbarramos na falta de financiamento para garantir bolsas para os extensionistas, transporte para os grupos de catalogação.

Concluir é indicar que estamos no começo

Hoje, com a nossa biblioteca ainda sem estar funcionando, apesar de ter estatuto e regimento registrados e dispor de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), nos defrontamos com a seguinte situação: temos livros, dispomos de espaço físico, há o reconhecimento geral da importância desta iniciativa, existe uma pesquisa em andamento cujo objetivo central é investigar o impacto que o funcionamento de uma biblioteca viva e participativa tem para a superação dos analfabetismos absoluto e funcional. Não temos financiamento. Assim, não conseguimos dar sequência ao nosso projeto de contribuir com as pessoas de Piranhas, que precisam se emancipar.
Persistimos com a ideia de que fazer funcionar nossa biblioteca popular é necessário. E entendemos este movimento nos inspirando na poesia de João Cabral de Melo Neto, intitulada Tecendo a Manhã:
Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.



REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. IBGE. Censo demográfico 2010. Brasília, 2011. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Resultados_Gerais_da_Amostra/resultados_gerais_amostra.pdf. Acesso em: 12 ago. 2012>.
_______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. IBGE. Cidades – 2013. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=270710&search=alagoas|piranhas|infograficos:-dados-gerais-do-municipio>. Acesso em: 30 set. 2013.
_______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. IBGE. PNAD 2012. Disponível em: <www.ibge.gov.br/home/estatistica/.../sinteseindicsociais2012/default.shtm>. Acesso em: 5 out. 2013.
CARNEIRO, Levi. O problema do livro nacional. Rio de Janeiro: [s.n.], 1938. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/elibris/linacional/.html. Acesso em: 20 jun. 2007.
CARVALHO, Bernardina Silva de. Princípios norteadores para as ações de extensão da UFPB. João Pessoa, 2011. (mimeo).
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