Eu
não lembro exatamente com que idade ouvi estas palavras de minha mãe, mas
lembro perfeitamente de minha reação. Alguns amigos mais velhos já frequentavam
a escola e haviam me contado sobre as cadeiras torturantes, as obrigações
diárias com as tarefas de casa, sobre o quão é difícil aprender a ler, a
ditadura da caligrafia onde eram obrigados a imitar a letra da professora,
entre outros atos aterrorizantes que aconteciam naquelas masmorras, por mim
desconhecidas, chamadas de “sala de aula”.
O
desespero tomou o meu peito, tentei argumentar, chorar, implorar misericórdia,
perguntar o que havia feito para ser submetido a tamanho castigo...todas sem
sucesso. Me vi obrigado a tomar medidas enérgicas, saquei a última carta da
manga:
-Mas
eu não preciso de escola, eu já sei tudo o que preciso! Olha só!!!
-A,
E, I, O, U....ÃO!!! – ao pronunciar as vogais eu acreditava que estava
demonstrando que sabia de absolutamente tudo o que havia para ser aprendido na
escola, um amigo mais velho estava nesta fase do aprendizado e ele havia me
falado sobre essas vogais. Procurei dar maior ênfase ao “ão” pois, para mim
esse era um segredo que, somente os privilegiados universitários sabiam de sua
existência.
Não
deu certo...
Não
demorei muito a aprender a ler, já estava familiarizado com as formas e sons
das letras, pois em casa haviam muitas histórias em quadrinhos as quais eu me
dedicava a ler diariamente. Se eu lia o balão de fala dos personagens e não
entendia, eu observava as ilustrações e então fazia as ligações, e, finalmente
compreendia o contexto da ação, acredito que isso acelerou o meu processo de
leitura.
Quando
já me sentia confiante o bastante, procurava livros de outras turmas, livros
mais avançados, já não aguentava mais os livros simples que são
disponibilizados para crianças em seus primeiros anos, ora, ninguém merece
passar a primeira e a segunda série (equivalente aos nossos segundo e terceiro
anos) lendo sobre “A bola amarela da Lili”, “A pipa do vovô” e muito menos “O
peixinho azul”, não é mesmo? Mas o que realmente me irritava eram as
ilustrações, eram muitos simples do meu ponto de vista. Não aceitava livros
cujas ilustrações contidas fossem tão simplórias que até mesmo uma criança
poderia faze-las (hoje eu sei que esse tipo de ilustração é intencional, a ideia
é justamente essa, passar a sensação de que o desenho foi feito por crianças).
Na
minha busca por livros, entrei em contato com um exemplar da série Cachorrinho
Samba, a ilustração de capa mostrava um cão, aparentemente vira-lata, em
detalhes e em cores, ao folhear o livro, vi que as cores se perdiam, mas as
qualidades dos traços eram iguais à da capa. Bem...os alunos da 4ª série que me
perdoassem, mas eu não podia deixar que um livro daqueles ficasse esquecido em
meio a uma pilha de “A bola amarela da Lili” e seus similares, levei o livro
para minha sala durante o recreio.
Cachorrinho
Samba tinha uma particularidade, era um cão intelectual, provavelmente o mais
intelectual que já conheci, não tenho certeza, mas ele não corria atrás da
própria cauda, então acho que isso pode nos dar uma boa pista. Neste livro,
Samba viajava para a Rússia, e, entrando em contato com outros cães, ele fazia
uma série de perguntas sobre o país, inclusive sobre a política local e fazia
reflexões sobre o que aprendeu, ou seja, era um cão filósofo!
Samba
despertou meu lado inquisitivo, aquele lado que não importava o quanto lia,
sempre ficavam perguntas a serem respondidas, somente a informação não era o
suficiente, queria muito mais. Eu raramente fazia perguntas às professoras, achava
que quem tem que ensinar cerca de quarenta crianças não deve ter muito tempo a
perder com um aluno curioso. Os livros da biblioteca infantil da minha escola
não respondiam minhas perguntas, só fui encontra-las no livro de História Geral
do meu pai, um calhamaço maior que uma lista telefônica, de papel amarelado e
cheiro de mofo. Mas aí é outra história.
Voltando
ao cachorrinho.
Samba
era um animal que buscava compreender e questionar a sociedade de seu tempo,
ele procurava por soluções para os problemas que encontrava. Não se denominava
“apolítico”, pois ele, mesmo com sua mentalidade canina, entendia perfeitamente
que qualquer ato que envolvesse a sociedade de modo geral, também era um ato
político. Ele não se eximia de seu papel, pelo contrário, procurava saber tudo
sobre seus deveres e direitos, de acordo com a sociedade em que ele estava
inserido, independente se esta era uma fazenda, a floresta ou a Rússia.
Ah,
se mais brasileiros pudessem ser como o Cachorrinho Samba...
Provavelmente
aqueles que ganham a vida consertando panelas teriam alguns problemas
financeiros, mas o que podemos fazer? Uns ganham e outros perdem...
Yan Philipe Barbosa de Oliveira
(Artista visual)




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